Já caia a noite quando, depois de uma viagem de três horas de barco, chegamos a aldeia Apiwtxa, do povo indígena Ashaninka, localizada no município acreano de Marechal Thaumaturgo, em local próximo a fronteira entre o Brasil e o Peru.
Ao descer do barco, nas margens do Rio Amônia, já se podia ouvir os sons que vinham da aldeia, barranco acima: tambores, flautas e cantoria. Era 28 de junho, e o povo Ashaninka comemorava o aniversário de 19 anos de demarcação da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, com a festa do piyarentsi.
Naquele momento, a festa entrava em sua 16ª hora – ela havia começado às quatro da manhã daquele dia, e seguira ininterrupta até o anoitecer. A comemoração já havia mudado de lugar dentro da aldeia, já ocorrera a competição de arco e flecha, já houvera muita dança, mas não se via nenhum sinal de cansaço – na verdade a festa prosseguiria ainda, sem pausas, até a noite do dia seguinte. Em um terreiro, centenas de indígenas, homens, mulheres, crianças e idosos, dançam abraçados, em grupos, ao som de sua música tradicional.
De quando em quando, os músicos param por um período e a música ashaninka é substituída pelos ritmos do forró brasileiro ou da cumbia peruana, dançados com a mesmo vigor. Tanto os músicos como os dançarinos usam a kushma, veste de algodão fabricada pelos ashaninka (os ashaninka são um dos únicos povos da Amazônia que sempre usou vestimentas, mesmo antes de contato com os brancos), assim como colares e enfeites de penas e sementes.
Perto dali, seis galões, de 500 litros cada, estão carregados da bebida que dá nome a festa, o piyarentsi. Também conhecido como caiçuma, o piyarentsi é uma bebida alcoólica leve, de fabricação tradicional dos ashaninka e de outros povos indígenas. É feita a partir de uma pasta de mandioca e batata-doce, fermentada durante três dias.
“Você já tomou uma cuia da nossa caiçuma? Então vem tomar”, é o convite que o indígena ashaninka Leno Brasil faz aos recém chegados. “Essa é nossa maior festa. Temos outras caiçumadas menores, nos fins de semana, mas nenhuma tem tanta gente e tanta caiçuma como essa”, ele conta.
Francisco Pianko, indígena ashaninka e também representante da Funai na festa, na condição de assessor do presidente, explica a importância do Piyarentsi para seu povo: “o sentido na caiçuma para nós é se encontrar, confraternizar, conversar, dialogar. Ela não acontece só agora, pode ser feita para receber alguém, para comemorar alguma coisa. A bebida não é pra fazer o mal, é pra pessoa ser mais verdadeira, se expressar melhor através dela.”
No festejo não estão apenas os moradores da aldeia. Indígenas do outro lado da fronteira, do Peru, também vieram comemorar. Os visitantes peruanos também são do povo Ashaninka, que está dividido nos dois países, Brasil e Peru. No Brasil, os ashaninka somam cerca de mil pessoas, e estão em oito terras indígenas. A Aldeia Apiwtxa é a maior concentração ashaninka do lado brasileiro, com mais de 500 moradores. A população ashaninka Peruana é muito mais numerosa: são quase 100 mil indígenas. Na festa do piyarentsi da aldeia Apiwtxa, os ashaninka peruanos compareceram com uma delegação de mais de 40 pessoas.
A maioria deles vem da comunidade Sawawo, a aldeia ashaninka mais próxima do lado peruano da fronteira, localizada a distância de um viagem de quatro horas de barco, rio acima. Leonardo Paredes Garcia, um dos líderes da aldeia Sawawo, conta: “todo ano a gente visita a Apiwtxa, e eles também visitam nossa aldeia, no aniversário da nossa terra. Os ashaninka brasileiros e os ashaninka peruanos são iguais, são o mesmo povo, fazem a mesma festa, falam a mesma língua.”
Além dos parentes peruanos, os ashaninka da Apiwtxa recebem na festa outros povos indígenas do Acre. Só da terra indígena vizinha, Arara do Rio Amônia, em processo de demarcação, vieram cerca de 20 indígenas do povo Apolima-arara. Além deles, estão representadas na comemoração as etnias Shanenawa, Puyanawa e Yawanawá.
Um dos visitantes é Luiz Puyanawa, que agradeceu os ashaninka pela oportunidade de participar da festa: “Nosso cacique falou: vai lá, brinca com os nossos parentes. E eu gostei muito de brincar, dançar, tomar a caiçuma. Nós temos línguas diferentes, mas na festa nossos espíritos se unem”.
Ribeirinhos da região também foram convidados. Um deles é Raimundo Nonato, mais conhecido como “Nonatinho da Sanfona”, morador da reserva extrativista do Alto Juruá, localizada em área próxima a aldeia Apiwtxa. Ele conta: “Faz tempo que eles me convidavam para vir conhecer a Aldeia, e eu aproveitei a festa para vir”. Nonato contribui com a música, improvisando com a sanfona para acompanhar as flautas e tambores ashaninka.
Além de aproveitar a festa, Raimundo afirma que também se impressionou com a relação sustentável que os indígenas ashaninka mantém com a floresta: “acho que eles são um exemplo, você vê, quando a gente vem subindo pelo rio, tem muito desmatamento no caminho, mas depois que passa o marco da terra indígena, está preservado, fica até mais fresco por causa da mata”.
Motivos para comemorar
Porém, as coisas nem sempre foram da forma que Raimundo observou. Antes da demarcação da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, a situação era outra: havia forte presença de ocupantes não-indígenas no território tradicional dos ashaninka, com atuação intensa de madeireiros e de caça comercial. Uma fazenda de gado se preparava para iniciar as atividades ali, desmatando uma faixa de 5 km ao longo do rio.
As famílias ashaninka não estavam reunidas em uma aldeia, mas sim espalhadas no território, com pontos de ocupação de não-índios entre elas. Com suas atividades produtivas tradicionais prejudicadas, boa parte dos indígenas acabava se endividando com comerciantes brancos, e acabava servindo de mão-de-obra para os invasores.
Foi após a demarcação da terra, em 1992, e a remoção dos não-índios, que o cenário começou a mudar. Os indígenas, antes dispersos, se reuniram novamente, fundando a aldeia Apiwtxa, inaugurada em 1996. Para localização da nova aldeia foi escolhido um local estratégico, nas margens do rio e próxima aos limites da terra indígena. Dessa forma, os indígenas conseguem vigiar a principal via de entrada em seu território, e desencorajar invasões.
Com o tempo, a mata foi se recuperando nas áreas em que havia sido desmatada. Os ashaninka, em sua nova aldeia, passaram a criar peixes, jabotis e tracajás, que foram utilizadas para repopular o rio Amônia, cuja fauna se encontrava exaurida.
Com seu território recuperado, os ashaninka conseguiram também reorganizar sua produção econômica tradicional, diminuíram sua dependência de produtos comprados dos brancos, e conseguiram uma nova fonte de renda, com a venda de seu artesanato.
Os ashaninka buscaram ainda levar o conhecimento acumulado na gestão de seu território para além de suas terras: em 2007, inauguraram o Centro Yorenka Ãtame, uma espécie de escola, localizada próxima à sede do município de Marechal Thaumaturgo, destinada a transmitir a índios e não-índios os conhecimentos ashaninka de relação sustentável com a natureza, e que vem recebendo visitantes de outros estados e países.
Indígena enche cuia no barril de piyarentsi |
A animação da festa, que surpreende qualquer visitante, tem portanto motivações muito concretas: a recuperação do território ashaninka, e a preservação da floresta e o fortalecimento da cultura indígena.
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